Apesar da suposta democratização do sistema educacional, possuir um diploma universitário no Brasil ainda é um traço de distinção social. No século XIX, quando o país era composto por uma população majoritariamente escrava e analfabeta, freqüentar a universidade era um luxo acessível apenas a uma pequena elite, que utilizava todos os meios para manter tal privilégio. No livro As profissões imperiais (Medicina, Engenharia e Advocacia no Rio de Janeiro - 1822-1930), o professor e pesquisador Edmundo Campos Coelho mostra como a dificuldade de acesso à educação foi um poderoso elemento de exclusão social no país. Para tratar desta desigualdade, que se perpetua até hoje, o autor utiliza-se do ponto de vista das camadas mais ricas e intelectualizadas da população. Numa época em que as profissões praticamente inexistiam, possuir um diploma era um valioso adorno cultural, que valia mais como um passaporte de convivência com as camadas mais altas do país do que como um atestado de formação profissional. Através de um aprimorado estudo do exercício das profissões constituídas durante o período do Império — Medicina, Engenharia e Advocacia — o pesquisador traça um panorama crítico da cultura do bacharel no país e mostra como a valorização do diploma atingiu o ápice nos anos 30, com a regulamentação da profissões. Pertencente a chamada Sociologia da Profissões, uma área ainda pouco estudada no Brasil, o livro é fundamental para quem deseja conhecer os meandros da legitimação do diploma no Brasil, que acabou por transformar as diferenças em hierarquia e fez nascer o monopólio das instituições de ensino.
Como era no século XIX a relação das elites, que tinham acesso ao ensino superior, com as outras camadas da população?
A elite era altamente autoritária. As camadas mais privilegiadas da sociedade, as mais intelectualizadas, tinham total desprezo por aqueles que estavam abaixo na hierarquia social. A desigualdade era cultuada. Isso é muito visível na advocacia. O Instituto dos Advogados Brasileiros, que congregava os profissionais mais famosos da época, denotava um total desprezo pelas camadas mais baixas. A instituição era formada por pessoas com uma formação muito sofisticada, mas tinha um caráter muito antidemocrático, antipopular.
Há algum personagem famoso da historiografia nacional que caracterize esse pensamento?
Vários. Um deles é o Joaquim Nabuco, um homem terrível. Ele chegava em casa depois de uma campanha e lavava a mão para tirar o cheiro do povo do corpo. Nabuco era um homem extremamente antidemocrático e racista. Afrânio Peixoto, um médico sanitarista muito famoso na Belle Époque carioca, também cultivava essa desprezo, comum entre os membros da elite da época estudada.
Como se exercia, efetivamente, a exclusão social através do ensino?
No século XIX o ensino público era pago. As escolas do governo eram caríssimas. Só uma camada muita pequena conseguia freqüentar a universidade. As estratégias de exclusão eram tantas que mesmo quem conseguisse romper a barreira de acesso à universidade não encontrava forma de usar o diploma depois de formado. Aqueles que não pertenciam à elite tinham que ir para as cidades do interior porque os melhores cargos já estavam monopolizados. Havia inclusive uma separação que regulamentava quem podia advogar nos tribunais superiores e quem não podia. O diploma sempre foi um instrumento de exclusão social, talvez, no entanto, mais forte no século passado do que hoje.
O senhor acredita que este quadro tenha mudado com o aumento do número de universidades e, conseqüentemente, da quantidade de alunos matriculados no ensino superior?
A desigualdade ainda existe, hoje ela apenas se dá de forma diferente. Por exemplo, poucas são as pessoas das classes mais desprivilegiadas que conseguem entrar numa universidade gratuita. Quem não teve dinheiro para freqüentar uma boa escola vai acabar fazendo um curso noturno em uma universidade privada. Este aluno irá pagar caro para ter um ensino da pior qualidade. A universidade coloca na porta uma peneira muito fina, que é o vestibular. O ensino superior brasileiro ainda é um mecanismo poderoso de exclusão. Por outro lado, este aumento de profissionais em alguma áreas cria uma inflação dos diplomas de graduação que provoca a queda do valor deles. Como resultado disso, há um aumento dos cursos de mestrado e doutorado em variadas áreas. Essa criação não deixa de ser mais uma barreira, mais uma forma de promover a exclusão. Quem pode espichar a vida estudantil? É um investimento que leva tempo e dinheiro.
Qual era a importância do diploma numa época em que ele não tinha ainda um valor prático, de formação profissional?
No século XIX, e na virada do século, as profissões praticamente inexistiam. A Medicina até um tempo atrás não curava. Se você fosse ao médico ou ao curandeiro as chances de cura eram exatamente as mesmas. Um título acadêmico não tinha valor prático. Na verdade, ele era simplesmente um adorno cultural.
E quando este panorama começa a mudar? A partir de que época o diploma começa a ter importância para a formação profissional?
Nos anos 20, quando começa a explosão de matrículas, muda a natureza dos cursos. A Medicina começa a curar e Engenharia ganha um certo prestígio com Pereira Passos. O diploma passa a atestar competência em alguma atividade prática. Aliás, em um mercado pequeno, como era o brasileiro, a competência já estava comprovada pelo diploma. Isso ainda acontece no Brasil. Aqui, até hoje, o diploma traz a marca da competência não comprovada. O peso que se dá a educação formal é muito grande no Brasil.
Por que no Brasil? No exterior o panorama é diferente?
Nos outros países você tem profissões mais diversificadas. Nos Estados Unidos, até bem pouco tempo, engenheiro não era quem tinha um título e sim quem praticava uma atividade ligada à Engenharia. Esta separação entre diploma de nível superior e técnico, por exemplo, não é uma coisa que seja muito comum em outros países. Isso é típico do Brasil, onde ninguém quer ser técnico, todos querem ser doutores. Isso é um ranço do século passado.
E como essa característica aparece hoje na estrutura educacional e profissional do país?
Aqui tudo é controlado, cada profissão quer fechar o seu mercado, quer exercer o seu monopólio. Existem pessoas que são extremamente competentes em certas áreas e que não podem exercer um ofício porque não têm o título correspondente. Eu posso ser sociólogo e também ser extremamente competente em relação à consultoria de família, já que conheço muito sobre mecanismos sociais. No entanto, se eu quisesse, não poderia montar um consultório. O Conselho Federal de Medicina logo me processaria. Para mim, quem deveria decidir pela competência das pessoas era o mercado.
Existe algum país que fuja à esta regra da obrigatoriedade do diploma?
Na Inglaterra, até recentemente, não existia nenhuma lei que impedisse as pessoas de exercerem a Medicina. O que o governo inglês fez foi prevenir a população de que existiam pessoas competentes, com curso superior, e que estas é que deveriam ser procuradas. Isso não é surpreendente em outros países. No Brasil é que existe a criação deste monopólio.
Vendo por este ângulo, qual seria a finalidade da escola?
Ensinar coisas absolutamente irrelevantes e “dourar a pílula”. Para revestir o sujeito de um aparato, de um adorno cultural absolutamente desnecessário na atividade prática. Na verdade, a escola é uma forma de distinguir algumas pessoas de outras que poderiam fazer a mesma coisa mas que não tem tempo, nem dinheiro, para comprar o tal adorno cultural. Alguém que freqüenta um ótimo escritório de advocacia pode se tornar advogado sem nunca ter estado numa escola de direito. Eu estou convencido disso, até na Medicina. Você pode se tornar um clínico extremamente competente se você tiver um bom treino. A força do diploma no Brasil cria estes feudos, estes guetos profissionais onde ninguém pode entrar. Até os conselhos profissionais obedecem à esta lógica. Eles carregam a estrutura burocrática herdada dos anos 30 e continuam valorizando somente o diploma. A única coisa com que estas instituições se preocupam é saber se existe alguém exercendo a profissão sem autorização. Se os profissionais são ou não realmente competentes não é tão importante para os conselhos.
O senhor vê alguma forma de romper com esta barreira da exigência do diploma para o exercício de certas profissões?
As categorias profissionais são extremamente bem organizadas. Elas não vão querer que a profissão seja exercida por quem não possua o diploma. Esta exigência é uma das únicas formas de segurar a competição. De garantir o lugar no mercado, o monopólio. E agora, ainda tem o provão. A estrutura cria obstáculo em cima de obstáculo para garantir a exclusão social, que se mantém através do sistema educacional desde o século passado, ainda que de forma diferente.
Fonte: Grupo Editorial Record
Concordo em parte com o autor quando ele diz que o diploma é um elemento de exclusão social. Mas por outro lado, discordo do item em que ele fala que uma pessoa sem formação acâdemica pode exerecer a mesma função que um profissional formado. Até seria possível em questões extremente triviais, mas em questões mais elaboradas pertinentes ao universo da engenharia seria impossível.
Para uma análise em engenharia é necessário conhecimento em física, matemática, resistência dos materiais, mecânica dos solidos e dos fluidos, etc.
São inúmeras as mortes e prejuízos causados por deslizamentos, desmoronamentos, alagamentos, incêndios, etc. Problemas que foram gerados por falta de fiscalização e controle, causados pelo exercicio ilegal da profissão.
Imaginem um avião, um petroleiro, um grande edificio de escritórios, uma ponte Rio-Niteroi, uma usina nuclear, uma plataforma de petróleo, uma estrada férrea, construídos por não engenheiros, por pessoas sem formação acâdemica! Você confiaria?
Engº. Alberto C. Filho
Realmente fica difícil confiar, até porque o gênio é feito com 99% de luta,mesmo se obtiver um diploma.
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